sexta-feira, 11 de novembro de 2011

A BORBOLETA

As lindas asas azuis de corpo cansado,
finalmente na parede lisa e branca.
Ah! Descanso! Oh! Cansaço!

Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto voava? Não se lembra.
Ah! Descanso do voar! Oh! Cansaço do voar!

A amiga cigarra, a cantar, cantar:
- Después de um año bajo la tierra!
Morreu a amiga de tanto cantar.

Ah! Se pudesse, outra vez lagarta!
Comer, comer! Brincar de comer.
Há quanto tempo não come..
Deslizar por entre as folhas e depois comê-las.
E deslizar, e comer, e deslizar, e comer.
Armazenar, armazenar.

Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto comia? Não se lembra
Ah! Descanso do comer! Oh! Cansaço do comer!

A amiga cigarra no chão. As formigas a comê-la.
Comer! Comer!
Armazenar. Armazenar.


Ah! Se pudesse, outra vez casulo!
Silêncio, silêncio. Dormir em silêncio.
Dormir em si mesma, sobre si mesma, dentro de si.
Há quanto tempo não dorme.
E dormir, e comer-se, e dormir, e comer-se.
Poupar-se. Poupar-se.

Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto dormia? Não se lembra
Ah! Descanso do dormir! Oh! Cansaço do dormir!

A amiga cigarra, que já é formiga.
Fragmentos de cantos comidos.
E tudo é transmutar.


Ah! Se pudesse, outra vez o vôo!
O gozo consciente do voar!
Sem fome, sono, chão, amiga, destino.
Sem visões de formigas de asas azuis.
Nunca mais o encolher-se
Nunca mais o desdobrar-se


Grande aventura foi o voar! Sim, grande aventura!

O que fazia mesmo enquanto tentava? Não se lembra
Ah! Descanso do tentar! Oh! Cansaço do tentar!


02/11/11

ANTIGAMENTE, QUANDO EU ERA JOVEM

Antigamente, quando eu era jovem, achava que podia comer a vida,
 feito sobremesa.
Que ela estaria sobre a mesa, esperando para após o jantar.
Não importava comer o nada, ela estava lá, para dali a pouco.

Quando finalmente cansei de inapetências quis o doce.
E ele era de fruta estragada.

Antigamente, quando eu era jovem, sonhava que o tempo não existia.
Que era brincadeira de mau gosto das velhas bruxas.
Desdenhava das máscaras enrugadas, mostrando-lhes minha força.
 Sem medo do escuro do meu quarto.

Quando finalmente, acesa a luz, porque se fez noite lá fora,
 o escuro veio para dentro.

Antigamente, quando eu era jovem, abdicava dos grandes prazeres,
na espera fantasiosa dos pequenos milagres.
Doava amores e humores a quem comigo dançasse
a dança dos desatentos.

Quando finalmente, pés cansados, ouviu-se a música,
zumbiu no ouvido o som do tempo. Desafinado.


04/09/11

O TRADUZIR-SE

Com que cores pintar essa tela, se há nela todas as cores e, todas elas, intensas e sobrepostas? Que borrão é este, que encobre paisagens e cubos, e esferas?

Como traduzir este ser que há e que nem a mim se revela?

Sem antenas, setas, trilhos, retas. E nada se completa.

Tudo, de início em início, se entrelaça a outros inícios de coisa alguma.

E tudo esfalfa, tudo sangra, tudo arde.
 E tudo foge, tudo escapa, para de novo um novo ser se pintar.
Este ser de movediças areias, de patagônicas geleiras a se derreterem.
Com que cores pintar instantes? Qual a cor da vertigem?

Que ser é este, múltiplo, ávido, desgovernado? Que olha por meus olhos e não me lega lembrança sólida de seqüência nenhuma?

Este ser que não me ensina a diferença entre estar feliz ou infeliz, que não me dá tempo de sentir nada por inteiro. Que tudo já foi e não vi. E nada me deixa.

Que ser é este que em mim rodopia, e se contorce em misteriosas danças? E vai ao alto e despenca vôos alucinados. E sorri, nem sei de quê, e se inebria. E fecha minhas pálpebras e aspira partículas inspiradas de sons dispersos no ar que é só dele. Que vivencia serenidades e no instante seguinte me encharca de angústia.

Que ser é este que em mim habita mas não me pertence?
Com que cores pintar essa tela, se há nela todas as cores, e nenhuma permanece mais que um segundo?


13/10/11

O VOLTAR

Saí da minha casa e fui morar na sua
e ela era tão fresca, e era tão bela!
que pena haver nela tantas portas
e nenhuma, nenhuma janela!

Nenhuma, nenhuma janela
que desse para o que sou
tantas portas, tantas portas abertas
nenhuma em mim se fechou.


Fui lá fora ver se via
o tempo de estar sozinha
do antes de haver outra casa
que me levou o chão da minha.

A velha angústia de sempre
me abraçou, enternecida
que saudade da minha janela
onde lamento, livre, a vida!


11/10/11

QUANDO O AMOR ACABA

Muito se fala de quem perde um grande amor. Ninguém fala de quem deixa de querer, sem deixar de amar.
De como é difícil se privar da companhia de quem se gosta, só porque o amor acaba.
De ter que sufocar um carinho verdadeiro, para não alimentar falsas esperanças e de ter que abaixar os olhos por não suportar a queixa no olhar do outro.
De ter que aprender a desamar para libertar o próprio coração. De esperar que o outro desista.

Muito se fala de ser abandonado, mas ninguém fala na dor de quem primeiro enxerga o fim. E conta cada minuto até que morra de velho este amor. Até que apodreça. Porque quem percebe primeiro sofre, sozinho, a dor de se descobrir desapaixonado.
Ninguém fala de quem nem tem o direito de sentir saudade dos bons momentos, porque o processo de libertação, se não houver fuga, exige maus tratos, intolerâncias, asperezas, silêncios propositais. Desprezo.

Muito se fala de quem sofre o desprezo do ser amado, mas ninguém fala de quem se viu obrigado a desprezar, porque parece condição imposta à toda separação que há de haver sempre um culpado.
Quem é abandonado não tem a responsabilidade com sua dor. Sofre, chora, esperneia, chantageia, tenta o suicídio, amaldiçoa. Depois odeia para esquecer. E nesse instante em que o amor vira ódio, é ele quem abandona quem verdadeiramente o amou.
E quando tudo finalmente acaba, mais sozinho se sente quem, lá atrás, já anteviu.

Muito se fala dos amores nascidos simultaneamente, das paixões à primeira vista. Quem dera haver também o desamor simultâneo. Quantas amizades sinceras seriam preservadas! Que se chegasse ao clímax mútuo da desapaixão. E numa despedida sincera, livres os dois.


Não falo de sentimento de posse, nem de rotinas entediantes, nem de fatores externos. Falo de sintonia. De tempos diferentes.
Falo do amor que acaba porque acaba, sem motivo nenhum, sem patifarias, sem traições.
Falo do sofrimento de quem nem pode se dar ao luxo de chorar sua perda e ainda tem de arcar com uma culpa que não lhe cabe.


04/09/11 

domingo, 15 de maio de 2011

QUANDO SORRIR É PRECISO

Admiro quem não é dissimulado. Quem deixa transparecer suas emoções, sejam elas quais forem.
Não gosto de gente que pensa uma coisa e demonstra outra. Não confio em gente assim. Mas há momentos na vida em que não podemos mesmo demonstrar os nossos sentimentos.  Há situações onde o sofrimento de pessoas inocentes será poupado com um simples sorriso, mesmo que por dentro o coração esteja sangrando.
Como numa sala de espera de um consultório médico uma mãe tenta alegrar suas filhinhas, fazendo gracinhas e, de vez em quando, simula ajeitar os cabelinhos delas, mas que na verdade está checando se a febre está aumentando.
A dor, o cansaço, a decepção por três diagnósticos anteriores errados e a consequente piora do quadro das filhas parecem, por instantes, não transparecer aos olhos de estranhos. Contudo, para quem conhece profundamente seus traços e expressões revela-se o esforço a que ela se submete para transmitir-lhes tranqüilidade.
E quem filma acaba sorrindo, numa cumplicidade silenciosa.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Só pra dizer que te amo

"Oggi è un giorno qualunque
oggi si vive comunque
e non so perchè

Il tempo impone distanze
il tempo è fatto di assenze
e non c'è un perchè"


Há dias assim, como hoje,  em que brigo muito, muito comigo.
Porque faço o que devo e não faço o que quero.
Ouço Dolcenera, por nós.

Só preciso que saiba que não te esqueço.
18/04/11

sábado, 9 de abril de 2011

O SENTIDO DA VIDA

Dormir na inconsciência tranquila
de quem brincou o que podia
no dia que findou

E sentir o afeto verdadeiro
de um amigo
no abraço do sono junto

Eis a vida







A MÚSICA - II

Com a mão esquerda ao volante e a direita a atirar os discos antigos de vinil pela janela do caminhão. Assim ia ele, folgazão, pelas ruas da cidade, até a sua nova morada.
Com os olhos marejados de lágrimas, no assento do carona, a carregar espelhos e demais fragilidades, ia ela, parte integrante da mobília.
O asfalto, enriquecido de música, a soltar faíscas.

Certas pessoas quando querem, e mesmo quando nem percebem, causam mágoas profundas em outras. E ele, nesse dia, serviu-se de Nora Ney para marcar-lhe uma. Indelével.

Perder a casa própria e sujeitar-se novamente aos aluguéis, por amor ao marido, nunca foi coisa rara, infelizmente, para muitas mulheres. E ela, subordinada, por força das circunstâncias, aceitava a sua nova condição sem reclamar. Mas perder sua companheira de noites solitárias, ainda mais de maneira tão jocosa, foi dor indescritível.

E a grande ironia é que de todas as canções daqueles discos, cruelmente destruídos, a mais preciosa, a que dali em diante seria ouvida somente com os ouvidos de lembrar, era justamente a que ela cantava para velar o sono do seu amado:


 “Ó vento, não faz barulho
Porque ele está dormindo
Ó mar, não bata com força
Porque ele está dormindo.

Dorme, menino grande
Que eu estou perto de ti
Sonha o que bem quiseres,
Que eu não sairei daqui...”




Música: MENINO GRANDE
Compositor: ANTONIO MARIA (segundo o youtube)
Gravação: NORA NEY



sábado, 2 de abril de 2011

VERSO E REVERSO

              


Ela, de Aquário. A mente, à frente, sempre um passo.
Ele, de Sagitário. Metade homem, metade cavalo.


INÍCIO

Aos dois, a música:
Nele, dançada. Nela, ouvida.

Aos dois, a palavra:
Nele, falada. Nela, lida.

Aos dois, a risada:
Nele, farta. Nela, contida.



MEIO


Aos dois, os dias:
Nele, promessa. Nela, espera.

Aos dois, as noites:
Nele, festança. Nela, quimera.

Aos dois, o prazer:
Nele, busca. Nela, cautela.



FIM

Aos dois, o tempo:
Nele, cansaço. Nela, sublimação.

Aos dois, a saudade:
Nele, remorso. Nela, superação.

Aos dois, a morte:
Nele, partida. Nela, perdão.





Para a Dê e o seu Zezinho




A MÚSICA - I


                          


Numa noite, há muitos anos, na história de uma linda mocinha, houve um adeus com gosto de lágrimas, ao som de uma linda valsa. Não se conheceu o motivo do rompimento, mas soube-se da imensa dor por ele causada. E a mocinha viu partir o seu grande amor, e à medida que se afastava, ia-lhe arrancando, pedaço a pedaço, o coração. E os acordes da triste valsa a fazerem ainda mais lindos os olhos verdes do amado, que daquela noite em diante seriam de outra qualquer. E o valsear dos casais perderia o mais belo dos seus pares. Tudo acabado. O destino desfolhava toda a felicidade que seu amor traduzira. E o primeiro grande amor conhecia a dor. Desfeito o ninho, tudo se faria saudade.

Mas, assim como nas lindas valsas que falam de amor e dor, falou-se também do tempo, que trouxe de volta o amado e muitas outras dores, mas desta, sendo a primeira, para sempre no peito encravada.

E deste amor imensurável, até que a morte lhe tirasse o verde dos olhos do amado, nasceram frutos e, destes um, que pela mesma música se encantou. Regravou-se em outra época a canção que faria marcar, já então, duas adolescências.

E o tempo tornou a passar para que a morte levasse, desta vez a mocinha de olhos chorosos, de lábios já murchos de tantas renúncias. E viu-se o pranto correr, na saudade que ficou. E sua história foi-se consigo, ao encontro talvez do amado.

E o tempo, abre-alas da morte, levou também a adolescência do fruto para bem longe, deixando em tudo o perfume, na quietude dos amores contados e recontados.

Um dia, os frutos do fruto ouvirão a mesma valsa, ou outra, que os farão recordar-se de outros amores, em outros tempos, vividos.

Por onde o tempo passa e tudo o que a morte leva, ainda que haja dor, não se sabe que força é essa, que só a música permanece, para contar as histórias de amor.







Homenagem à Lola e Jayme






A música: E O DESTINO DESFOLHOU

1ª gravação – Carlos Galhardo – anos 30/40
2ª gravação – Paulo Sérgio – anos 70






O nosso amor traduzia felicidade e afeição
suprema glória que um dia tive ao alcance da mão
mas veio um dia o ciúme e o nosso amor se acabou
deixando em tudo o perfume da saudade que ficou.

Eu te vi a chorar, vi teu pranto em segredo correr
e parti, a cantar, sem pensar que doía esquecer.
 Mas depois veio a dor. Sofro tanto e essa valsa não diz,
 Meu amor, de nós dois, eu não sei qual é o mais infeliz.

Os nossos olhos choraram, o nosso idílio morreu.
Os nossos lábios murcharam porque a renúncia doeu.
Desfeito o ninho, a saudade humilde e quieta ficou
mostrando a felicidade que o destino desfolhou.

Composição de: Mario Rossi e Gastão Lamounier


27.03.11




OS GENÉRICOS DO AMOR




O amor, quando verdadeiro, não se interrompe. Não existe ser humano capaz de desligar esse interruptor. Não sem muito sofrimento. O que nos ilude, muitas vezes, é que nos vendem coisas parecidas com o amor. Há empatia, simpatia, admiração, carência afetiva, auto-afirmação. Há até a falta do que fazer. Mas, dentre todos os perigos aos quais está exposto o nosso coração, o mais devastador é quando nos fazem tomar do amor genérico.

O genérico do amor está por aí, em cada esquina, em cada virar de olhos, em cada poesia lançada aos quatro ventos. A bula é igual, a dose é a mesma, a embalagem criativa, o sabor às vezes até mais açucarado. Ao contrário do verdadeiro, que nos deixa na boca o mel e o fel, que altera o nosso cheiro, se embrenha pelos poros e chega ao nosso DNA, para dali em diante nunca mais sermos o que fomos antes dele. Estejamos onde estivermos e com quem estivermos ele estará lá, porque não há modo de desligarmos nossas artérias e permanecermos vivos.

O genérico do amor é danoso porque tem o brilho da coisa nova. Tem a leveza do encanto. (Do canto das sereias). A diferença é que ele evapora mais rapidamente e, ao evaporar, destrói o nosso sistema imunológico. Deixa-nos graves efeitos colaterais, como, por exemplo, a saudade da coisa vazia. E não existe pior seqüela que a saudade do que poderia. Bem diferente da saudade do amor curtido, que mesmo lavando os olhos, nos faz companhia.

Mas, cuidado, que até a saudade tem seus genéricos. Um deles até conheço: o amor-próprio ferido, que em tudo a ela se assemelha, no escuro. Até que nova luz se acenda.

Não que todo genérico seja ruim, pois na falta do nada o pouco sempre ajuda. Mas, se pretendemos evitar falsificações, nada melhor que a vacina de uma boa dose de auto-estima.











Dedicado a todos que tiveram seus interruptores danificados devido ao mau contato de fios baratos.








sexta-feira, 18 de março de 2011

OS REFUGIADOS DE JIRAU

A selvageria cometida por alguns empregados (ou não) da usina Jirau aqui em Rondônia provocou uma cena de horror jamais vista ou imaginada neste estado. Cerca de 20 mil homens e mulheres, em estado de pânico, no meio de uma verdadeira praça de guerra.  Mais de 50 ônibus, automóveis, caminhões e vários dos alojamentos totalmente destruídos pelo fogo, hoje são um amontoado de ferro retorcido e ainda fumegante, marcando para sempre na memória não só dos que lá estavam, mas de todos nós que acompanhamos pelas fotos e na televisão. 

Coisa triste de se ver a expressão do rosto dos mais de 4 mil homens desalojados, dormindo nos ginásios de esporte e até na rua, com suas trouxas de roupa e nenhum dinheiro, à mercê da caridade dos pães distribuídos, como se fossem refugiados de guerra. Brasileiros de vários estados que para cá vieram, em busca do sonho dourado que oferecem as construções de mega usinas como esta de Jirau, hoje na desolação total.

Usina parada. Policiamento ostensivo. Filas imensas na rodoviária para a volta  não se sabe pra onde. O sentimento unânime de sonho acabado em todos os pacatos trabalhadores que sofreram as consequências desta bestialidade.

Hoje, 18 de março de 2011, Porto Velho viu fecharem-se as portas das lojas em plena luz do dia, por medo de saques dessa gente que perdeu tudo. Até a esperança de serem cidadãos. Sem assistência, sem dignidade, sem passado, sem futuro.


18.03.11

AS COINCIDÊNCIAS DA VIDA

Eram duas horas da tarde e a tão aguardada entrevista com o editor chefe finalmente aconteceu. Do jeitinho que a sua esperança lhe prometera. Desde que chegara do sul, há poucas semanas, entregara alguns currículos, inclusive neste jornal, mas apesar da esperança de conseguir uma vaga, ainda sentia certo receio. Na semana anterior, o editor somente agendou uma nova visita, pois não poderia lhe atender.  Hoje não. Hoje ele até lhe surpreendeu, recebendo-a com um abraço caloroso. Elogiou seu currículo e lhe ofereceu a vaga. Era a sua grande oportunidade profissional e estava realmente feliz. Feliz não só pelo emprego, mas principalmente pelo carinho recebido num momento em que estava tão carente.
Saiu do jornal quase tropeçando nas próprias pernas, sentindo que sua vida mudaria para melhor. O único sentimento que ainda lhe apertava o coração era a saudade dos familiares que ficaram no sul, mas a vida de uma mulher casada impõe certos sacrifícios. Quando abdicara do seu trabalho e do convívio com os pais, irmãos e amigos para seguir com seu marido e filhinho para outro estado, já sabia que teria de abrir mão do seu passado para construir seu futuro com sua nova família.
Não via a hora de chegar a casa e ligar para a mãe e lhe dar as boas novas. Quem sabe a sua alegria fizesse bem a ela, já que a deixou tão deprimida com a sua partida. Estava ansiosa de poder dizer-lhe que agora já poderia trazê-la para viverem juntas e assim poder lhe compensar por todo o sacrifício empreendido na sua formação.
Não precisou ligar. O destino se encarregou de lhe oferecer a voz entristecida do pai, no toque repentino do telefone. Do outro lado da linha, a notícia que a sua querida mãezinha falecera, há poucos minutos. Às duas horas da tarde, no exato momento em que recebia, sem saber, o primeiro abraço de pêsames do seu futuro chefe. 





Dedicado à Keyla, minha colega de trabalho, cuja história me foi contada, entre lágrimas, mas conservando nos alvos dentes o sorriso mais lindo que já vi.


18.03.11

domingo, 13 de março de 2011

FELIZ DESANIVERSÁRIO



Era como o Chapeleiro Maluco comemorava todos os dias que não eram o dia do aniversário. E é neste domingo, 13 de março, que eu descelebro aqui de longe dois desaniversários. O primeiro, da Lavinia, que estaria assoprando suas sete inocentes velinhas, não fosse uma coisa inominável achar graça em metê-la pra debaixo da terra. O outro, da própria coisa, para quem em nenhum dia será aniversário, porque o tempo da coisa não é humano. Não conta os anos, não conta a vida.

Neste dia eu queria até crer, só pra que Lavinia estivesse comendo o bolo de massa mais leve e de gosto mais saboroso, seja lá onde for. Neste dia eu queria até crer que a coisa comesse (porque coisa come) o bolo de massa também leve e de gosto também saboroso, com uma pitada, não muita, mas o suficiente, do veneno mais poderoso.

Lavinia, cujo nome significa “a que purifica” veio ao mundo para livrar outros três anjos inocentes da coisa, a quem chamavam de mãe. Sejamos todos purificados. O sacrifício foi feito, para a glória do Senhor.


Alice Gomes
            

sexta-feira, 11 de março de 2011

DOBREM OS SINOS POR LAVINIA

Ando cansada de tanta benevolência. Ando mesmo cansada. – “Só Deus pode tirar a vida de um ser humano” – é o que mais ouço quando se fala em pena de morte para crimes hediondos. – “Se condeno à morte um assassino estarei agindo da mesma forma que ele” – outra frase premiadíssima nos festivais de asneiras. É impressionante a capacidade humana de perdão, em se tratando de tragédias alheias, que só lhe dizem respeito o tempo necessário até uma nova manchete na televisão.
Há alguns dias um monstro brasileiro enrolou um cadarço de tênis no pescoço de uma criança brasileira de seis anos de idade e a enforcou, para se vingar do amante. Enforcou uma criança de seis anos! Enforcou uma criança de seis anos! Enforcou uma criança de seis anos! Não, não é erro de digitação. É horror mesmo. Eu ouço o grito dessa criança, implorando ajuda, e não posso acudi-la. Eu vejo as suas perninhas e bracinhos se debatendo em vão enquanto agoniza, e não posso acudi-la. Eu sinto a sua lingüinha sendo espirrada para fora e não posso acudi-la. – Ah! Senhoras e senhores, não me venham falar de perdão em hora de náuseas!

Eu me nego terminantemente a compactuar com esta entorpecida permissividade reinante na chamada sociedade cristã (des)organizada, que fecha os olhos às barbáries, em nome de uma pretensa predestinação divina. - Nem na plateia me caibo. - Não sou conivente. Jamais serei conivente com um povo que prefere manter no seu seio um monstro, a permitir que futuros inocentes sejam protegidos, através da coibição severa desses atos inomináveis. Não sou cúmplice de assassinos de crianças. Meu Deus não é esse. Meu Deus não escreve tão torto dessa maneira. Se o Homem foi criado à imagem de Deus, como pregam os entendidos em leis celestiais, reivindico o meu pedacinho Dele para gritar por todos os inocentes que estão hoje com as bocas cheias de vermes, embaixo da terra. Por todas as crianças que deveriam estar brincando neste momento, ao invés de estarem à mercê de cadarços demoníacos nos pescoços.

Pelo menos as crianças! Que adultos são estes, com sangue de barata, que não conseguem fazer leis que protejam, pelo menos, as crianças de seis anos de idade?   – “Ah, mas a doida-lá foi presa” – Tá. Mas a doida-lá está viva, comendo, dormindo, brevemente namorando. E daqui a bem pouco tempo, livre, graças ao bom comportamento. Talvez nem fique presa, se for constatada insanidade mental. Me poupem. Até aos doidos de pedra se pode ensinar que não se rasga dinheiro e não se come bosta. Nada custa acrescentar que não se mata criança, caso contrário se morre também.  Doida sou eu que não consigo entender como um ato desses, cometido por um humano, deva ser julgado por Deus, já que seguramente não foi a Seu mando... (E deixo aqui as reticências propositalmente).

Orem, senhoras e senhores, pela alma do anjinho que foi para perto do Senhor, enquanto eu aqui fico orando pela criação imediata da Lei Lavínia. A Lei que matará sumariamente quem se atrever a assassinar crianças neste país.

Enquanto isso, a nova manchete já é de um outro doido que resolveu degolar a moça,  porque a amava e não era correspondido. Não sem antes quebrar-lhe os ossos e os dentes.

 Alice Gomes
   11.03.11


Referente ao bárbaro assassinato por enforcamento da garotinha Lavínia Azeredo em 02.03.11  que completaria neste domingo (13.03.11) seu aniversário de 7 anos.

Baseado nos textos abaixo, de autoria de Luiz Vieira Costa Neto, o Yamânu, publicado no Recanto das Letras em 05.03.11, e que gentilmente me cedeu autorização para a divulgação






MONSTRO E GENTE
O MONSTRO
FAZ-SE DE INSANO
MENTE SER DOENTE
MATA IMPIEDOSAMENTE

GENTE
INSANA GENTE
QUE A SI MENTE

CHORA A MORTE DA CRIANÇA
É CONTRA A MORTE DO MONSTRO
E CHAMA AO MONSTRO DE GENTE



(LUIZ VIEIRA COSTA FILHO)
05.03.11

  

  


MORRA MONSTRO
CRIANÇAS MORREM A TODO INSTANTE. ACIDENTES, GUERRAS DOENÇAS, FOME, ASSASSINADAS.

AS VEZES ACONTECE ALGUMA COISA DENTRO DA GENTE  QUE NÃO SABEMOS EXPLICAR. ALGUM ACONTECIMENTO É MUITO PESADO PARA NOSSOS OMBROS. MESMO SENDO ALGO QUE VEJAMOS ACONTECER TODOS OS DIAS.

O ASSASSINATO DESSA MENINA LAVÍNIA ESTÁ PESANDO NOS MEUS OMBROS, COMO SE ESSA MENINA DE SEIS ANOS DE IDADE TIVESSE O PESO DE TODAS AS CRIANÇAS QUE MORREM DIARIAMENTE EM TODO O MUNDO. ME SINTO CULPADO.

SINTO COMO SE EU ESTIVESSE AO LADO DELA DÊS DE O MINUTO EM QUE O MONSTRO A RETIROU DA SEGURANÇA DE SEU QUARTO. ESTOU AO LADO DELA NA RUA A CAMINHO DA CAVERNA DO MONSTRO. EU ESTOU COM ELA NA CAVERNA DO MONSTRO.

ENTREI COM ELA NAQUELE ÔNIBUS A CAMINHO DO SEU DESTINO FATAL. ENTREI NAQUELE QUARTO. VI O PAVOR ESTAMPADO EM SEU ROSTINHO DE MENINA DE SEIS ANOS DE IDADE. OUVI SEU CHORO. SUAS SÚPLICAS. E NADA FIZ.

PORQUE SINTO ESSAS COISAS NÃO SEI.  APENAS SINTO CERTA CULPA PELA MORTE DESSA MENINA. ME PERGUNTO PORQUE EU NÃO ESTAVA LÁ PARA IMPEDIR. PORQUE EU NÃO MATEI O MONSTRO ANTES QUE ELE MATASSE CRUELMENTE AQUELA MENINA DE SEIS ANOS DE IDADE.

COMO É POSSÍVEL QUE ALGO ASSIM ACONTEÇA? UMA MENININHA OLHANDO PARA A MORTE. SENTINDO A DOR DO GARROTE EM SEU PESCOÇO DE CRIANÇA. SENTINDO A DOR DA MORTE. COMO É POSSÍVEL QUE ALGO ASSIM ACONTEÇA?

PORQUE O MONSTRO NÃO MORREU UM SEGUNDO ANTES DE TENTAR MATAR A CRIANÇA? PORQUE EU NÃO ESTAVA LÁ PARA MATAR AQUELE MONSTRO? MORRA MONSTRO. TIRE ESSE PESO DE MEUS OMBROS MONSTRO.  MORRA MONSTRO.



(LUIZ VIEIRA COSTA FILHO)
05.03.11

sábado, 5 de março de 2011

O ACONCHEGO DO VOLTAR



Andei tão afastada de mim
que por pouco não me perco.

Tão outros fui por um tempo
que quase me esqueço.

Mas voltei.

 E como é bom quando me volto
 para quem me espera!

e me revejo

E reaprendo coisas
que desaprendo, às vezes.

OS DEFEITOS


 Em todos os relacionamentos, incluindo os de amizade, chega o dia em que as máscaras caem. À medida que o tempo vai passando e os laços vão se estreitando, o que estava dentro aflora, inexoravelmente. E quase sempre aceitamos a maioria do que chamamos defeitos no outro, mesmo que nos magoem, mas todos nós temos o nosso catálogo de defeitos não perdoáveis.  E quando ultrapassam a nossa linha dos defeitos imperdoáveis, mesmo que leve algum tempo, ao nosso coração já foi dada a ordem para o rompimento. Para alguns de nós que temos em nossa índole cumprir palavra empenhada, muitas vezes teremos de concluir alguns compromissos que ainda estavam pendentes, mas já nos tiraram a mágica do oferecimento.

De minha parte, o pior defeito que vi em pessoas da minha convivência, e ao que raramente perdoei, foi quando me dei conta de que me usaram para qualquer fim de seus próprios interesses. Na verdade, nem é por ser usada, pois isso em todas as relações interpessoais acontece em algum momento, mas foi quando subestimaram a minha inteligência. Para enganar alguém que joga limpo, o mínimo que se pode fazer, até por respeito, é ter a capacidade de não permitir que esse alguém perceba. Se for para mentir, que seja com competência, por favor. Não me obrigue a fazer de conta que não percebi. É preciso que esse alguém me seja muito caro para que a farsa continue. 
E como, há muito tempo, já deixei de sofrer por imbecis, parto, livre e solta, aberta a novos relacionamentos e preparada para os defeitos humanos. Exceto os constantes do meu catálogo.


Alice Gomes

27.02.11

O LIVRO NÃO LIDO

O livro pronto. Letras tecidas, uma a uma, dor a dor, purgadas, mordidas, coadas. Toda a sua vida ali retratada, nas trezentas e tantas páginas. Todas as imagens do ser e do não-ser, de si e do que vira, do tudo que sentira e tocara. Toda a densidade de sua mente febril e genial finalmente ordenada. Tinha o discernimento de saber tratar-se da sua obra-prima. Porém, a notícia que lhe traziam os vômitos e dores, a cada hora mais frequentes, lhe dizia claramente que não mais sonhasse. Nunca mais futuros, reais ou imaginários. Era agora questão de dias, para o nada esperar de nada.

Pediu à enfermeira que lhe trouxesse os óculos, retirou do velho baú, guardado à chave, seu precioso calhamaço e tocou de leve os dedos por todas as folhas, como a despedir-se das próprias veias e ossos.  

- Este não. – decidiu num ímpeto. Aos outros, milhares, de poemas, pensamentos, cartas, manifestos, todos eles rascunhos de mim, que fizessem o que quisessem, ou nada fizessem. – Talvez os publiquem nalgum dia. Talvez não. Que importa? Este, que sou eu, explicitamente eu, morrerá comigo. Não sou mesmo deste tempo.

Enquanto ateava fogo ao livro, agora eternamente inédito, riu o riso tristemente filosófico dos grandes poetas. – Quem havia de me dizer todo o sentido que hoje há nos versos que um de mim metaforicamente escreveu, há tantos anos? Em que circunstância do entre vida-morte eu leria meus próprios versos!: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas: a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus” – Tirou os óculos, e de olhos fechados, um a um convocou, para o definitivo encontro, todos que foi.


Alice Gomes

24.02.11


Fantasia em homenagem ao grande Fernando Pessoa, cuja biografia (www.pessoa.art.br) revela que nos seus últimos minutos de vida pediu os óculos e clamou pelos seus heterônimos. Quase a totalidade de sua obra só foi publicada várias décadas APÓS a sua morte.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O ANJO BLOGUEIRO

Eu tenho a mania de invocar anjos. Tenho um para cada situação. Descobri que assim funciona melhor do que se tiver só um para me ajudar em tudo o que eu preciso. Perdi muito tempo na vida tentando audiência com o primeiro escalão, até descobrir que há vários outros, subalternos, que podem nos ajudar em pequenos problemas do cotidiano. Por exemplo, nos meus tempos de contabilidade, quando estava com dificuldade e urgência de fechar um balancete, eu gritava (dentro de mim): - Oh, meu Anjinho Contador, me ajuda! E lá vinha ele, me soprar algum número escondido em qualquer canto e pronto! Fechava. O Anjo Contador já o aposentei, mas tenho vários outros ainda na ativa, como o Anjo Encanador, o Anjo Eletricista (meio desajeitado esse), o Anjo Escritor (fugiu no 4o período da Escola dos Anjos), o Anjo Lembrador, o Anjo Enfiador de Linha na Agulha... Só não encontrei ainda um Anjo Faxineiro, mas tudo bem, alguma coisa tenho de fazer sem ajuda divina. Enfim, sempre me dei muito bem com todos eles, mas os tempos mudam e com os novos a chegada de novas enrascadas:

Recentemente tive que enviar solicitação aos superiores que me providenciassem um entendido em blogspot, porque palavras como templates e gadgets pra mim são palavrões ainda não inseridos no meu vocabulário. Pensei que não tivesse merecido a graça, mas não é que dia desses me apareceu um? Meu Anjinho Blogueiro.

É mudo, o coitado. Mas, esperto como ele só, deu um jeito de me apresentar à Tayane, uma menina que, com seu jeitinho displicente, me ajudou num detalhe que estava emperrando meu blog de existir da maneira que eu queria. Não tem pessoinhas que surgem assim, do nada, em nossa vida, para fazê-la mais leve? Então, coisas de anjos.


22.02.11

CONSELHOS DE EX

Caso você case, não diga nada sobre nós ao seu amor, me promete?
Não há nada pior num relacionamento novo que a comparação com ex-esposa. Sei que entre nós não poderia mais dar em nada mesmo, mas vai que ela não saiba da impossibilidade? Se tiver que lhe explicar porque não poderá casar na igreja, conte aquela história do derradeiro desejo de uma virgem moribunda. Sempre cola.
Porque, vai que ela comece a cutucar uma história que acabou faz tempo e que me coloque tantos atributos, pra se nivelar por alto, que te traga alguma lembrança indevida? Vai que, ao tentar convencê-la do contrário, ela comece a pensar que você só gosta de porcaria e comece a se perguntar por que você a escolheu, depois de mim? Vai que de tanto ouvi-la falar em mim, você se entoje até da voz dela? Pensando bem, há coisa pior que o passado sim. É de lascar quando a gente pega birra da voz de quem se ama. Vai que de tanta birra você comece a lamentar o casamento e a preferir o tempo em que só a pegava de vez em quando, enquanto estava comigo?                
Ah! Meu amigo. Bom seria se não casasse, mas caso você case não se esqueça de abrir logo o jogo, deixando bem claro que não pretende ser fiel. Verdade logo no início faz doer um pouco, mas ainda é melhor que a verdade descoberta depois de muito amor doado. Mas não se esqueça também, e isso é muito importante, de destravar a porta pra ela ter lá as suas escapadinhas, sempre que estiver meio carente e não ter você por perto. Ah! E um último conselho: não se esqueça de providenciar um quarto para a D. Matilde. Ouvi dizer que ela está pretendendo morar com a filha, logo depois do casamento.


20.02.11

Para a rodada de crônicas
Tema: CASO VOCÊ CASE

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O QUADRO E A PRINCESA

- As Cartas não mentem jamais. - Mentiram. Disseram-me que meu lindo príncipe viria, montado num cavalo branco e me amaria. Disseram que ele viria porque eu era uma princesa e há sempre um príncipe chegando para cada princesa que espera.
Digníssimos cavalheiros por mim desfilaram com cavalos de todas as cores e admirei suas cavalgadas, mas não era, nenhum deles, o príncipe. Acenei-lhes de longe e desejei-lhes boa viagem. Que lhe dessem notícias minhas, quando o vissem. Decerto só não cavalgaram nas mesmas estradas, pensava.
Valentes guerreiros, decentes ferreiros, pescadores, aldeões, tantos sapos beijados! E nenhum traço de realeza.

Mas nunca ousei praguejar contra a Cartomante. Ela prometera e eu esperava. No quadro pintado que emoldurava seu semblante altivo, ao pé do meu berço, no momento solene da predestinação, me lembrava sempre que eu confiasse.

Até que um dia, certa luz de triste poente revelou-me no rosto da Cartomante um riso de ironia. E tudo se fez claro. E tudo se fez dor. Mentiram-me as Cartas. Mentiu-me a Cartomante. Cínica! Tivesse o sol nascente, ou qualquer outra curva de sol, adentrado a janela, a tempo! E se tivesse lhe perguntado, pois que espelhos e pinturas respondem às princesas, teria me dito: - Tola! Não vês que cumpro a sina da enganosa Esperança? Tu és a princesa e, portanto, príncipe será, por consorte, qualquer um que aceite o título.  – E assim, na solidão das coisas possíveis ruíram castelos e sonhos. Só restaram duas velhas paredes: uma a eternizar o riso da Cartomante e a da janela, por onde vislumbro o Tempo.


                                               
13.02.11




3a. TAÇA DE OURO no blog Letras do BVIW
com o tema CARTOMANTE

Eh! gente. Tô ficando mal acostumada!

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

SE É PRA FALAR EM VERDADES

Mas, de qual realidade você está falando?
Da que me priva da presença de quem me agrada e me força a tolerar quem nem conheço? Da que me oferece sons que me zumbem no ouvido e me reduz a minutos os que me apaziguam? Da que me tira da cama na hora em que eu queria estar me aconchegando nela?  Da que protelou por mais não sei quantos os já 30 de trabalhos forçados?  Da que se baseou em não sei qual mãe a minha expectativa de vida? Da que nem sei o gosto, porque não me apetece? Não, obrigada.

Prefiro o que você chama de alienação. Declino das realidades que você me serve neste prato de papelão corroído pelos ratos que me enojam e que se julgam meus donos. As suas realidades me enfraquecem o que em mim deveria ser forte e fortalecem o que tenho de pior. Por elas me tornei indiferente a tudo o que chamam gente. Por elas não me jogo mais às perolas, porque não valho os porcos.

A sua Vida nunca me permitiu nada do que lhe pedi, mas eu não sei por qual mistério lhe aprouve conceder-me papel e lápis e com eles, ah! mal sabe ela que me deu tudo o que eu precisava.
Com eles invento meus mundos, descubro rotas de fuga, crio minhas personagens e creio nelas, porque na fantasia tudo se pode, tudo se esquece, tudo entorpece. Choro dores que não são minhas, dou-lhes pompas e circunstâncias. Rio risos que não são meus, mas tampouco serão seus, porque eu os criei, para o meu deleite. Criei o meu mundo à sua revelia.

O que quer saber você, agora, do que sinto? Mude primeiro o seu mundo e só me convide quando ele me couber. Antes disso, quem é você que não sou eu? O que você pensa que sabe do que é verdade em mim ou em você? Eu lhe dou palavras. É a minha última concessão. Reflita-se nelas, se quiser, mas não pretenda que elas lhe mostrem o que você quer que eu seja.

Você nem ao menos pode saber se inventei quem lhe disse o que acabou de ser dito.


08.02.11

domingo, 30 de janeiro de 2011

QUANDO A CULPA É NOSSA

Tudo bem: você, quando come alguma coisa na rua, não sai por aí jogando a embalagem no chão. Quando toma água ou refrigerante no carro não joga nada pela janela. Ok, você faz a sua parte, certo? E aí você se irrita com quem faz isso. Realmente, há pessoas que nos irritam com atitudes de gente porca, imunda, que não deveria ter o direito de conviver com os outros seres humanos. É mesmo uma questão de higiene. E higiene não é questão de estética, é para prevenir doenças, oh! Porcalhões! Cascas de frutas podres nas ruas atraem moscas varejeiras que nos trazem sérias doenças. Não deveríamos estar expostos a doenças que já deveriam estar erradicadas, por causa de pessoas sem higiene. E, no entanto, estamos.
Não temos mais tempo para conivências. É preciso agir e agir rápido. Quando um estranho joga um entulho que entupirá um bueiro está colocando em risco não só a sua saúde como a nossa. E que atitude tomamos? Nenhuma. Falamos, falamos, mas ninguém alerta o estranho sobre seu ato falho. Pior é quando quem joga o entulho é nosso vizinho, ou nosso amigo. Como dizer-lhes o que já deveriam saber, sem o constrangimento de ter que dizer-lhes o óbvio? Se nós sabemos, porque eles não sabem? Porque não foram ensinados? Porque é o seu modo de demonstrar rebeldias contra o sistema? Porque dessa maneira se vingam de nós por algum motivo que só eles sabem?
Até quando viveremos sob a ditadura da maioria burra? Por que não é politicamente correto dizer aos outros o que devem fazer? Porque temos que respeitar a democracia, onde cada um tem o direito de emporcalhar a rua onde também moramos?
Não basta fazermos a nossa parte. É preciso cobrar na cara dura. Que tal sermos lembrados pela geração chata que resolveu por fim às porcarias?

30/01/11

A RESENHA

Avassaladora paixão entre a jovem filha de um pescador e um marinheiro, ambientada numa aldeia litorânea do sul da Itália, no ano de 1910. A princípio imaginamos ser a história da música Gesu Bambino, do Lucio Dalla, pois a própria música é cantada por um homem numa taberna, enquanto lá na praia ilustra a cena clássica da mocinha que se percebe abandonada pelo seu grande amor, e, parada, olhando o mar, mãos na barriga, com a lágrima caindo livre pelo rosto e os cabelos soltos ao vento, finalmente aceita a realidade de que está realmente só, com o filho para criar. Fortemente repreendida pelos pais, principalmente pela mãe, que a obriga a trabalhar para o sustento do seu filho, ela pede emprego justamente na taberna, como garçonete, na esperança de saber notícias do seu amado.
Só que, pouco tempo depois, quando o filho já com 5 ou 6 anos ( o filme dá uma pulada no tempo) acontece uma reviravolta na história e, ao contrário da música, ela aceita o convite de um velho marinheiro que está prestes a se aposentar e vai embora com ele, abandonando também a criança. Momento tenso do filme, onde não sabemos se a acusamos ou se lhe perdoamos o desejo de reconstruir sua vida, se levarmos em conta a cultura excludente daquela época que condenava à solidão perpétua as mulheres na sua situação. A cobiça incontida dos homens, na ávida expectativa que ela se torne disponível a eles, já que era garçonete na taberna, e as mulheres, com o escárnio advindo da inveja pela sua estupenda beleza e juventude.
Quando pensamos já adivinhar o final, eis que retorna o pai do garoto, com uma história convincente da razão da sua partida repentina. Emoção total no desespero, quando descobre que ela foi embora e ninguém sabe dizer para onde. Seu desejo é o de se jogar no mar, mas quando vê o seu filho brincando sozinho na areia, decide ficar com ele e o filme termina com a cena dos dois correndo de mãos dadas pela praia.
A história, apesar de triste e com passagens parecidas com outros enredos já vistos, conta com a mais linda fotografia de todos que já vi. Tomadas lindíssimas das paisagens daquela região. Até nas tempestades as imagens são primorosas. Além da beleza física de todos os atores, coisa rara em filmes que se propõem a retratar a vida de gente pobre e sofrida. Mérito para a maquiagem e a correta utilização da luz.
Destaque também para a trilha sonora, com clássicos da música italiana, como o Gesu Bambino, já citada, Gli Uomini non Cambiano, no final do primeiro dia de trabalho na taberna, e finalizando com Ammore Annasconnuto, já próximo ao final, tocada divinamente pelo avô do garoto, na cena em que o rapaz sai do mar e se deita exausto na areia, no momento em que reconhece no garotinho a sua razão de viver.
Enfim, um filme sem pretensão de grandes arrastões de público, mas satisfazendo plenamente aos amantes do cinema-arte. - Ah! Esqueci de dizer o nome do filme, não é? Pois é, ainda não decidi. Mas até eu ganhar sozinha na mega-sena terei tempo para pensar em um. Aceito sugestões.


Tem gente que sonha comprar aviões. Outros a filmar suas fantasias.

25/01/11

AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ

Neusa era menina moleca, naquele tempo onde nem se conhecia calça comprida. Vestidinho de cintura eternamente descosturada. Joelhos ralados de tombos e arranhões. Cabelos mal cortados, lavados na chuva. Pés descalços, no pó e lama. E lá ia, de biblioquê na mão, no carrinho de rolimã, pegar rabeira de caminhão. Boneca não. – Não tem graça. – Brincava de manhã à noite com Carlito, seu irmão, e Osvaldo, primo em segundo grau, que veio especialmente de Portugal pra ser seu saco de pancadas: - E dá-lhe no cocorôto!
Mas nem sempre era só surra. Havia olhos e olhares. Os dela azuis como o céu. Os dele enamorados. – Primo, não! É quase irmão, não pode. – E os três, alheios ao mundo, faziam do seu, aventuras tamanhas, dessas que se contar ninguém acredita.
Um dia o tempo, esse mesmo que leva tudo, levou pra longe os dias de criança. E quem foi criança cresceu. E quem cresceu namorou, noivou e casou. Cada um com seu caminho, cada um com sua história. Vieram os filhos e os filhos dos filhos. E quem tinha história ficou sozinho, porque o tempo também leva as histórias. Ele divorciado, ela viúva.
E não é que um dia, desses, que a Vida resolve brincar de faz-de-conta, os dois primos se reencontraram? Os olhinhos azuis dela brilharam, camuflados nos óculos de grau, e os dele, empapuçados de tempo, cerveja e cigarro também marejaram?
Soube dos dois, há poucos meses, aposentados, viajando por este Brasil afora.

24/01/11

ESTE QUE É AQUELE?

Ouço as vozes lindíssimas da Simone e Dulce Pontes cantando Sinal Fechado, do Paulinho da Viola, e imagino quantos nós de garganta e palpitações estancadas já ocorreram em situações semelhantes, na vida real.
- Olá, como vai? Tudo bem, eu vou indo e você? ... Me perdoe a pressa..
Ainda hoje no Recanto li numa frase que o ex é o único amor que dura para sempre. E não é que é?  O amor depois que acaba, quando não acaba, tem uma leitura diferente da que teria se verdadeiramente acabasse. Tem um quê de posse embargada. De jóia empenhorada, que ainda é nossa, mas à qual já não temos acesso. Quer dizer, imagino que assim o seja, pois nunca experimentei reencontro de amor mal acabado. No meu caso, todos eles são ex, no sentido mais específico do fenecimento. Todos morreram de velho. E o que não morreu, não é ex.
Um dia, faz tempo já, encontrei um antigo namorado, na fila de um banco. Ele não me viu e ajudei pra que não me visse. Não por temor de qualquer reavivamento, mas por não ter o que falar mesmo. Ele, de costas, a umas quatro ou cinco pessoas na minha frente, olhando pros lados, às vezes para o alto. – A mesma impaciência de sempre!
Nada como poder ver ex-amores pelas costas, literalmente falando. Metade do romantismo vai embora nessa posição. E muitos centímetros também. Será que os homens encolhem depois de um tempo? – Este que é aquele, por quem eu era perdidamente apaixonada? - Ainda bem que ele não me viu quando saiu do banco. Como diz o Chico: é sempre desconcertante rever um grande amor. Ainda mais se ele te pegar rindo sozinha.
24/01/11


2a. TAÇA DE OURO NA RODADA DE CRÔNICAS NO BLOG DO BVIW
COM O TEMA "ENCONTRO COM EX-AMORES"


UEBA!!!

AS MISÉRIAS HUMANAS

A empresa onde trabalho está angariando, aqui em Porto Velho, donativos para os brasileiros do Rio de Janeiro, que no momento estão privados não só, mas também, de bens materiais. Olhando aquele amontoado de coisas que iam chegando e sendo despejadas no chão: biscoitos, roupas novas e velhas, arroz, meias, bolsas, leite, muletas, feijão, fraldas, sapatos de todas as cores e tamanhos, como se fossem entulhos para reciclagem, num retrato que renderia teses de mestrado em semi-ótica, me pus a agradecer à Vida o privilégio de dar o que nunca precisei pedir. De nunca ter provado da miséria, mesmo que momentânea.
Coloquei-me no lugar da mulher que precisará entrar numa fila para receber os seus absorventes (ainda bem que há gente que pensa nisso, eu não tinha pensado), ou passando pelo constrangimento de avaliar o tamanho das calcinhas, a ver se lhe serve alguma.
Diante daquele quadro inusitado para todos nós que ali estávamos, ouvi observações das mais variadas: - Olha esta sandália arrebentada! Como alguém vai usar isso? – Ora! É só colar com superbonder!  - E esta botinha aqui, que linda! Novinha! Por que será que estão dando, se está nova ainda?
 E eu, imaginando que talvez a garotinha que receberá a botinha nova, antes da tragédia nem tivesse igual. Talvez ainda tivesse mãe, mas botinha nova não. Ou haverá divisão de castas na triagem? Torço pra que não.
Um abriu uma caixa de biscoito recheado, comeu um, fez cara de nojo e jogou o resto no lixo: – Deve estar vencido! - Outro se admirou da quantidade de comida: - nunca vi tanta fartura!
Outra, depois de muito escolher, sem qualquer pudor separou um tênis branco e novo, para levá-lo, no final do expediente. Talvez seja o presente de Natal que não deu ao filho ou marido.
Não só as riquezas são diferentes, como diz a canção. Também há muitos tipos de miséria.

22/01/11

O PODER DE CONCISÃO

Drummond disse que quando terminava de escrever seus livros, com cerca de 2000 páginas, começava o verdadeiro trabalho de escritor, que é o da lapidação, de modo a conservar deles só a essência. Não por acaso foi grande. É no poder da concisão que se revela o bom escritor.  Coisa que ando me esmerando ultimamente, mas até agora, sem sucesso. É que tenho pena de deixar palavras soltas em cima da mesa, feito sobra de massa que nem pode ser aproveitada no bolo e nem servirá para o próximo, porque as texturas já não serão as mesmas.
Lembrei do Drummond porque uma frase me veio à cabeça hoje, mas ao tentar discorrer sobre ela, percebi que jamais o conseguiria em linhas contadas, porque as lembranças são muito minhas ainda e o distanciamento necessário para expurgá-las demanda tempo. Deixei a frase de lado e resolvi divagar sobre a capacidade que tem o nosso cérebro de abrir instantaneamente arquivos gigantescos, zipados e criptografados. E enquanto uma parte se ocupa da descompactação do passado, outra o devolve traduzido ao momento presente, com um poder de síntese impressionante.  Uma palavra acessa o passado, outra o resume.
Com a mesma facilidade dos convívios íntimos, onde uma frase, ou gesto, ou piscadela se transformam em senhas que abrem arquivos compartilhados de imagens, dificilmente retratadas a estranhos com a mesma perfeição e rapidez.
Como ainda estou longe dessa concisão e se aproxima o meu limite de linhas, o jeito é interromper o texto e buscar formas de subdividir meus arquivos em outros mais leves.

A frase? – “Ah! Doce vingança! Não eram para você minhas poesias!”

22/01/11



O limite de 20 linhas é regra para postagens no blog do BVIW
Lá eu não pude dizer mas aqui quero acrescentar (porque tenha pena das sobras)
que Drummond completou sua frase dizendo que ele só publicava seus livros
para não ter que mexer mais neles. Para se livrar deles.