sexta-feira, 18 de março de 2011

OS REFUGIADOS DE JIRAU

A selvageria cometida por alguns empregados (ou não) da usina Jirau aqui em Rondônia provocou uma cena de horror jamais vista ou imaginada neste estado. Cerca de 20 mil homens e mulheres, em estado de pânico, no meio de uma verdadeira praça de guerra.  Mais de 50 ônibus, automóveis, caminhões e vários dos alojamentos totalmente destruídos pelo fogo, hoje são um amontoado de ferro retorcido e ainda fumegante, marcando para sempre na memória não só dos que lá estavam, mas de todos nós que acompanhamos pelas fotos e na televisão. 

Coisa triste de se ver a expressão do rosto dos mais de 4 mil homens desalojados, dormindo nos ginásios de esporte e até na rua, com suas trouxas de roupa e nenhum dinheiro, à mercê da caridade dos pães distribuídos, como se fossem refugiados de guerra. Brasileiros de vários estados que para cá vieram, em busca do sonho dourado que oferecem as construções de mega usinas como esta de Jirau, hoje na desolação total.

Usina parada. Policiamento ostensivo. Filas imensas na rodoviária para a volta  não se sabe pra onde. O sentimento unânime de sonho acabado em todos os pacatos trabalhadores que sofreram as consequências desta bestialidade.

Hoje, 18 de março de 2011, Porto Velho viu fecharem-se as portas das lojas em plena luz do dia, por medo de saques dessa gente que perdeu tudo. Até a esperança de serem cidadãos. Sem assistência, sem dignidade, sem passado, sem futuro.


18.03.11

AS COINCIDÊNCIAS DA VIDA

Eram duas horas da tarde e a tão aguardada entrevista com o editor chefe finalmente aconteceu. Do jeitinho que a sua esperança lhe prometera. Desde que chegara do sul, há poucas semanas, entregara alguns currículos, inclusive neste jornal, mas apesar da esperança de conseguir uma vaga, ainda sentia certo receio. Na semana anterior, o editor somente agendou uma nova visita, pois não poderia lhe atender.  Hoje não. Hoje ele até lhe surpreendeu, recebendo-a com um abraço caloroso. Elogiou seu currículo e lhe ofereceu a vaga. Era a sua grande oportunidade profissional e estava realmente feliz. Feliz não só pelo emprego, mas principalmente pelo carinho recebido num momento em que estava tão carente.
Saiu do jornal quase tropeçando nas próprias pernas, sentindo que sua vida mudaria para melhor. O único sentimento que ainda lhe apertava o coração era a saudade dos familiares que ficaram no sul, mas a vida de uma mulher casada impõe certos sacrifícios. Quando abdicara do seu trabalho e do convívio com os pais, irmãos e amigos para seguir com seu marido e filhinho para outro estado, já sabia que teria de abrir mão do seu passado para construir seu futuro com sua nova família.
Não via a hora de chegar a casa e ligar para a mãe e lhe dar as boas novas. Quem sabe a sua alegria fizesse bem a ela, já que a deixou tão deprimida com a sua partida. Estava ansiosa de poder dizer-lhe que agora já poderia trazê-la para viverem juntas e assim poder lhe compensar por todo o sacrifício empreendido na sua formação.
Não precisou ligar. O destino se encarregou de lhe oferecer a voz entristecida do pai, no toque repentino do telefone. Do outro lado da linha, a notícia que a sua querida mãezinha falecera, há poucos minutos. Às duas horas da tarde, no exato momento em que recebia, sem saber, o primeiro abraço de pêsames do seu futuro chefe. 





Dedicado à Keyla, minha colega de trabalho, cuja história me foi contada, entre lágrimas, mas conservando nos alvos dentes o sorriso mais lindo que já vi.


18.03.11

domingo, 13 de março de 2011

FELIZ DESANIVERSÁRIO



Era como o Chapeleiro Maluco comemorava todos os dias que não eram o dia do aniversário. E é neste domingo, 13 de março, que eu descelebro aqui de longe dois desaniversários. O primeiro, da Lavinia, que estaria assoprando suas sete inocentes velinhas, não fosse uma coisa inominável achar graça em metê-la pra debaixo da terra. O outro, da própria coisa, para quem em nenhum dia será aniversário, porque o tempo da coisa não é humano. Não conta os anos, não conta a vida.

Neste dia eu queria até crer, só pra que Lavinia estivesse comendo o bolo de massa mais leve e de gosto mais saboroso, seja lá onde for. Neste dia eu queria até crer que a coisa comesse (porque coisa come) o bolo de massa também leve e de gosto também saboroso, com uma pitada, não muita, mas o suficiente, do veneno mais poderoso.

Lavinia, cujo nome significa “a que purifica” veio ao mundo para livrar outros três anjos inocentes da coisa, a quem chamavam de mãe. Sejamos todos purificados. O sacrifício foi feito, para a glória do Senhor.


Alice Gomes
            

sexta-feira, 11 de março de 2011

DOBREM OS SINOS POR LAVINIA

Ando cansada de tanta benevolência. Ando mesmo cansada. – “Só Deus pode tirar a vida de um ser humano” – é o que mais ouço quando se fala em pena de morte para crimes hediondos. – “Se condeno à morte um assassino estarei agindo da mesma forma que ele” – outra frase premiadíssima nos festivais de asneiras. É impressionante a capacidade humana de perdão, em se tratando de tragédias alheias, que só lhe dizem respeito o tempo necessário até uma nova manchete na televisão.
Há alguns dias um monstro brasileiro enrolou um cadarço de tênis no pescoço de uma criança brasileira de seis anos de idade e a enforcou, para se vingar do amante. Enforcou uma criança de seis anos! Enforcou uma criança de seis anos! Enforcou uma criança de seis anos! Não, não é erro de digitação. É horror mesmo. Eu ouço o grito dessa criança, implorando ajuda, e não posso acudi-la. Eu vejo as suas perninhas e bracinhos se debatendo em vão enquanto agoniza, e não posso acudi-la. Eu sinto a sua lingüinha sendo espirrada para fora e não posso acudi-la. – Ah! Senhoras e senhores, não me venham falar de perdão em hora de náuseas!

Eu me nego terminantemente a compactuar com esta entorpecida permissividade reinante na chamada sociedade cristã (des)organizada, que fecha os olhos às barbáries, em nome de uma pretensa predestinação divina. - Nem na plateia me caibo. - Não sou conivente. Jamais serei conivente com um povo que prefere manter no seu seio um monstro, a permitir que futuros inocentes sejam protegidos, através da coibição severa desses atos inomináveis. Não sou cúmplice de assassinos de crianças. Meu Deus não é esse. Meu Deus não escreve tão torto dessa maneira. Se o Homem foi criado à imagem de Deus, como pregam os entendidos em leis celestiais, reivindico o meu pedacinho Dele para gritar por todos os inocentes que estão hoje com as bocas cheias de vermes, embaixo da terra. Por todas as crianças que deveriam estar brincando neste momento, ao invés de estarem à mercê de cadarços demoníacos nos pescoços.

Pelo menos as crianças! Que adultos são estes, com sangue de barata, que não conseguem fazer leis que protejam, pelo menos, as crianças de seis anos de idade?   – “Ah, mas a doida-lá foi presa” – Tá. Mas a doida-lá está viva, comendo, dormindo, brevemente namorando. E daqui a bem pouco tempo, livre, graças ao bom comportamento. Talvez nem fique presa, se for constatada insanidade mental. Me poupem. Até aos doidos de pedra se pode ensinar que não se rasga dinheiro e não se come bosta. Nada custa acrescentar que não se mata criança, caso contrário se morre também.  Doida sou eu que não consigo entender como um ato desses, cometido por um humano, deva ser julgado por Deus, já que seguramente não foi a Seu mando... (E deixo aqui as reticências propositalmente).

Orem, senhoras e senhores, pela alma do anjinho que foi para perto do Senhor, enquanto eu aqui fico orando pela criação imediata da Lei Lavínia. A Lei que matará sumariamente quem se atrever a assassinar crianças neste país.

Enquanto isso, a nova manchete já é de um outro doido que resolveu degolar a moça,  porque a amava e não era correspondido. Não sem antes quebrar-lhe os ossos e os dentes.

 Alice Gomes
   11.03.11


Referente ao bárbaro assassinato por enforcamento da garotinha Lavínia Azeredo em 02.03.11  que completaria neste domingo (13.03.11) seu aniversário de 7 anos.

Baseado nos textos abaixo, de autoria de Luiz Vieira Costa Neto, o Yamânu, publicado no Recanto das Letras em 05.03.11, e que gentilmente me cedeu autorização para a divulgação






MONSTRO E GENTE
O MONSTRO
FAZ-SE DE INSANO
MENTE SER DOENTE
MATA IMPIEDOSAMENTE

GENTE
INSANA GENTE
QUE A SI MENTE

CHORA A MORTE DA CRIANÇA
É CONTRA A MORTE DO MONSTRO
E CHAMA AO MONSTRO DE GENTE



(LUIZ VIEIRA COSTA FILHO)
05.03.11

  

  


MORRA MONSTRO
CRIANÇAS MORREM A TODO INSTANTE. ACIDENTES, GUERRAS DOENÇAS, FOME, ASSASSINADAS.

AS VEZES ACONTECE ALGUMA COISA DENTRO DA GENTE  QUE NÃO SABEMOS EXPLICAR. ALGUM ACONTECIMENTO É MUITO PESADO PARA NOSSOS OMBROS. MESMO SENDO ALGO QUE VEJAMOS ACONTECER TODOS OS DIAS.

O ASSASSINATO DESSA MENINA LAVÍNIA ESTÁ PESANDO NOS MEUS OMBROS, COMO SE ESSA MENINA DE SEIS ANOS DE IDADE TIVESSE O PESO DE TODAS AS CRIANÇAS QUE MORREM DIARIAMENTE EM TODO O MUNDO. ME SINTO CULPADO.

SINTO COMO SE EU ESTIVESSE AO LADO DELA DÊS DE O MINUTO EM QUE O MONSTRO A RETIROU DA SEGURANÇA DE SEU QUARTO. ESTOU AO LADO DELA NA RUA A CAMINHO DA CAVERNA DO MONSTRO. EU ESTOU COM ELA NA CAVERNA DO MONSTRO.

ENTREI COM ELA NAQUELE ÔNIBUS A CAMINHO DO SEU DESTINO FATAL. ENTREI NAQUELE QUARTO. VI O PAVOR ESTAMPADO EM SEU ROSTINHO DE MENINA DE SEIS ANOS DE IDADE. OUVI SEU CHORO. SUAS SÚPLICAS. E NADA FIZ.

PORQUE SINTO ESSAS COISAS NÃO SEI.  APENAS SINTO CERTA CULPA PELA MORTE DESSA MENINA. ME PERGUNTO PORQUE EU NÃO ESTAVA LÁ PARA IMPEDIR. PORQUE EU NÃO MATEI O MONSTRO ANTES QUE ELE MATASSE CRUELMENTE AQUELA MENINA DE SEIS ANOS DE IDADE.

COMO É POSSÍVEL QUE ALGO ASSIM ACONTEÇA? UMA MENININHA OLHANDO PARA A MORTE. SENTINDO A DOR DO GARROTE EM SEU PESCOÇO DE CRIANÇA. SENTINDO A DOR DA MORTE. COMO É POSSÍVEL QUE ALGO ASSIM ACONTEÇA?

PORQUE O MONSTRO NÃO MORREU UM SEGUNDO ANTES DE TENTAR MATAR A CRIANÇA? PORQUE EU NÃO ESTAVA LÁ PARA MATAR AQUELE MONSTRO? MORRA MONSTRO. TIRE ESSE PESO DE MEUS OMBROS MONSTRO.  MORRA MONSTRO.



(LUIZ VIEIRA COSTA FILHO)
05.03.11

sábado, 5 de março de 2011

O ACONCHEGO DO VOLTAR



Andei tão afastada de mim
que por pouco não me perco.

Tão outros fui por um tempo
que quase me esqueço.

Mas voltei.

 E como é bom quando me volto
 para quem me espera!

e me revejo

E reaprendo coisas
que desaprendo, às vezes.

OS DEFEITOS


 Em todos os relacionamentos, incluindo os de amizade, chega o dia em que as máscaras caem. À medida que o tempo vai passando e os laços vão se estreitando, o que estava dentro aflora, inexoravelmente. E quase sempre aceitamos a maioria do que chamamos defeitos no outro, mesmo que nos magoem, mas todos nós temos o nosso catálogo de defeitos não perdoáveis.  E quando ultrapassam a nossa linha dos defeitos imperdoáveis, mesmo que leve algum tempo, ao nosso coração já foi dada a ordem para o rompimento. Para alguns de nós que temos em nossa índole cumprir palavra empenhada, muitas vezes teremos de concluir alguns compromissos que ainda estavam pendentes, mas já nos tiraram a mágica do oferecimento.

De minha parte, o pior defeito que vi em pessoas da minha convivência, e ao que raramente perdoei, foi quando me dei conta de que me usaram para qualquer fim de seus próprios interesses. Na verdade, nem é por ser usada, pois isso em todas as relações interpessoais acontece em algum momento, mas foi quando subestimaram a minha inteligência. Para enganar alguém que joga limpo, o mínimo que se pode fazer, até por respeito, é ter a capacidade de não permitir que esse alguém perceba. Se for para mentir, que seja com competência, por favor. Não me obrigue a fazer de conta que não percebi. É preciso que esse alguém me seja muito caro para que a farsa continue. 
E como, há muito tempo, já deixei de sofrer por imbecis, parto, livre e solta, aberta a novos relacionamentos e preparada para os defeitos humanos. Exceto os constantes do meu catálogo.


Alice Gomes

27.02.11

O LIVRO NÃO LIDO

O livro pronto. Letras tecidas, uma a uma, dor a dor, purgadas, mordidas, coadas. Toda a sua vida ali retratada, nas trezentas e tantas páginas. Todas as imagens do ser e do não-ser, de si e do que vira, do tudo que sentira e tocara. Toda a densidade de sua mente febril e genial finalmente ordenada. Tinha o discernimento de saber tratar-se da sua obra-prima. Porém, a notícia que lhe traziam os vômitos e dores, a cada hora mais frequentes, lhe dizia claramente que não mais sonhasse. Nunca mais futuros, reais ou imaginários. Era agora questão de dias, para o nada esperar de nada.

Pediu à enfermeira que lhe trouxesse os óculos, retirou do velho baú, guardado à chave, seu precioso calhamaço e tocou de leve os dedos por todas as folhas, como a despedir-se das próprias veias e ossos.  

- Este não. – decidiu num ímpeto. Aos outros, milhares, de poemas, pensamentos, cartas, manifestos, todos eles rascunhos de mim, que fizessem o que quisessem, ou nada fizessem. – Talvez os publiquem nalgum dia. Talvez não. Que importa? Este, que sou eu, explicitamente eu, morrerá comigo. Não sou mesmo deste tempo.

Enquanto ateava fogo ao livro, agora eternamente inédito, riu o riso tristemente filosófico dos grandes poetas. – Quem havia de me dizer todo o sentido que hoje há nos versos que um de mim metaforicamente escreveu, há tantos anos? Em que circunstância do entre vida-morte eu leria meus próprios versos!: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas: a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus” – Tirou os óculos, e de olhos fechados, um a um convocou, para o definitivo encontro, todos que foi.


Alice Gomes

24.02.11


Fantasia em homenagem ao grande Fernando Pessoa, cuja biografia (www.pessoa.art.br) revela que nos seus últimos minutos de vida pediu os óculos e clamou pelos seus heterônimos. Quase a totalidade de sua obra só foi publicada várias décadas APÓS a sua morte.