terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O CAVALO DAS ALMAS - II

Vou contar essa história direito:

Houve um tempo em que fui menina. Sim, porque às vezes penso que nasço a cada manhã, já velha e cansada, sem saber exatamente onde e porque estou. Mas, sempre, ao final de cada um desses dias, sei que fui menina, por mera lógica de quem se percebe humano, apesar de tudo. Sei que tive história, sei da minha raiz enterrada numa cidadezinha do interior do Paraná. Sei que tive pai, mãe, irmãos, primos, vizinhos e essas coisas, cada um com suas histórias. Guardo na memória até histórias que não são minhas, pela convivência e por ouvir dizer. E tive uma casa.
Nessa casa, além de pai, mãe, irmãos, varanda, quintal, havia logicamente um telhado. Porque não, não era uma casa muito engraçada..
Havia um telhado que, para mim, era um cômodo a mais, parte integrante dos meus melhores momentos. Digo, sem a menor dúvida, que vivi mais tempo nas árvores e no telhado, que dentro da minha casa, apesar de manter na retina cada centímetro dela, cada rabisco nas paredes sem pintura, cada nuance da madeira encerada do assoalho, cada homenzinho do fecho das janelas, cada móvel. Ainda sei onde encontrar cada quinquilharia de cada gaveta. Basta fechar os olhos. Mas sempre, sempre, olho o interior da casa, do ponto de vista do telhado. Vejo tudo de cima, como quando era criança. Chego a me ver lá embaixo da mesa, meu lugar predileto, quando a minha mãe lavava o piso e colocava pó-de-serra, para secar mais rápido. E eu ficava desenhando com os dedos e ouvindo, sem entender, os assuntos de dor ou riso, de que falavam os adultos.
Alheamento talvez seja a palavra que melhor me defina, desde sempre.  E era nesse alheamento que eu fixava não as vozes, mas os sentimentos que elas me causavam:
- Olha que tu te ofuscas! – disse-me o meu pai, certa vez em que eu pairava a mão sobre a fumaça da lamparina, porque achava lindo o desenho que se formava na palma . Não entendi que o verbo desconhecido era uma ordem para que eu tirasse a mão. Só na terceira vez, em que a frase aliou-se ao olhar de cenho fechado, foi que comecei a desconfiar que palavras são absolutamente desnecessárias quando se deseja algo de crianças ou filhotes de qualquer espécie. Basta o olhar duro, o dilatar de narinas, a rispidez da voz.
Aprendi desde cedo a me esquivar, para não merecer o castigo das reprimendas. Aprendi a lição errada, mas agora, que importa? Tivesse eu simplesmente perguntado o significado de termos ignorados, tantas imagens como esta não queimariam como fogo até hoje na memória.
Do telhado para onde vou, quando quero me ver, existe um fogão antigo, como tudo naquela casa. Antigo como é hoje o meu espelho, mas lá era meu contemporâneo. Companheiro de cimento vermelho, onde os toquinhos de giz tingiam de branco os toscos desenhos e caligrafias caprichadas. Sentada no chão, como tinha de ser, Sempre no chão, embaixo das coisas, ou no alto. Nunca ao mesmo nível de gente grande. Estranho modo de infância, mas agora, que importa?
Numa coisa minha mãe e eu concordávamos sobre aquele fogão: ele era mais que um objeto inanimado. Para mim era paciente professor e para ela o:
- Cavalo das almas!
Que veio dos infernos para fazer da minha vida outro!
Pobre mãe, já tão enjoada de tantos cozimentos de vida. Tanto se fartaram com sua comida família, empregados, comadres, vizinhas. E ninguém partilhava a fuligem.
E pobre fogão, agora cavalo, que nem sabia onde era o inferno, já que era ela quem lhe ateava o fogo. Engasgava-se o pobrezinho, e se entupia de pressa e medo.
E me doía ouvir o tom, mais que o som, daquela desesperada prece às avessas. 
Então, eu subia no telhado, meu velho conhecido, e erguia não sei como, a vara que lá ficava, de comprimento exato que ia e vinha, e despejava lá embaixo todo o picumã incrustado. E desafogava amigo e mãe, até o próximo engasgo.
Não me lembro de ouvir, ver que fosse, nos olhos, um agradecimento pelo perigo e intenção do gesto. Talvez porque o tempo em que permanecia lá no telhado  fosse o suficiente para o esquecimento, ou talvez até tivesse agradecido e eu não me dei conta. Quantos agradecimentos devo ter recebido na vida, e não me atentei, por não pensar que os merecesse.
Mas me lembro bem que o definitivo herói, o que a presenteou com o novo fogão à gás, foi beijado e abraçado. Tivesse eu descido em seguida, alguma vez, do telhado e partilhado o consolo do paliativo, e tivesse pedido o abraço... mas agora, que importa?
O que restou do cavalo das almas foi a nossa quietude.

11/12/11

Nenhum comentário:

Postar um comentário